Em votação histórica, Unicamp aprova as cotas na pós-graduação

Conselho Universitário aprovou a resolução de cotas étnico-raciais por unanimidade

Foto: Antonino Perri / Portal Unicamp

Em reunião do Conselho Universitário de 01 de agosto de 2023, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) aprovou por unanimidade sua primeira resolução geral que dispõe sobre a implementação das políticas de ações afirmativas em modalidades de cotas para ingresso na pós-graduação. Dessa forma, “todos os Programas de Pós-Graduação ficam orientados a estabelecer políticas de ações afirmativas em modalidades de cotas étnico-raciais (pretos, pardos ou indígenas) em seus processos seletivos de ingresso”.

Segundo a proposta, o percentual destinado às políticas de ações afirmativas em modalidade de cotas (reserva de vagas ou vagas suplementares) deve somar ao menos 25% do total disponibilizado. A partir das especificidades de cada programa, esse percentual pode ser ampliado até atingir a meta de ter entre os ingressantes a mesma proporção de pessoas pretas e pardas domiciliadas no Estado de São Paulo, conforme os últimos levantamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Atualmente, essa proporção é de 37,2%.

Além disso, a regulamentação abre a possibilidade para a adoção de outras ações afirmativas e atendimento a outros grupos sociais. Considerou-se que os programas de pós-graduação possuem autonomia para ampliar a abrangência das ações afirmativas voltadas ao acesso, bem como avaliar o atendimento a outros grupos sociais que - devido a processos históricos e culturais de desigualdade e marginalização - enfrentam barreiras no acesso à pós-graduação (pessoas com deficiência, pessoas trans, entre outros).

As ações afirmativas na Unicamp

O Vestibular Unicamp foi criado em 1986, a partir da crítica ao então processo seletivo de estudantes pelo vestibular da FUVEST. A partir dos anos 2000, a universidade concedeu isenções da taxa de inscrições a partir de critérios socioeconômicos para a seleção dos beneficiados, e posteriormente, em 2004, criou o Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social (PAAIS). Esse programa consistia em ampliar as isenções de taxas e criar um sistema de bonificação que adicionava pontos na nota final dos candidatos de escolas públicas, acrescidos mais pontos para candidatos dentro desse grupo autodeclarado pretos, pardos ou indígenas.

Outro passo importante da conquista por maior equidade no acesso ao ensino superior foi a criação, em 2010, do ProFis (Programa de Formação Interdisciplinar Superior), destinado aos egressos de escolas públicas de Campinas com melhor desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e limitado a duas vagas por instituição pública. Esse programa, com duração de dois anos, dá ao estudante a possibilidade de escolher os cursos de graduação da Unicamp de acordo com um número definido de vagas e com uma classificação baseada em desempenho nas disciplinas básicas.

Apesar dessas políticas, a bonificação isoladamente não aumentou a proporção de estudantes pretos, pardos e indígenas na graduação de forma significativa MOYA, Thais Santos. Para além das cotas: como as ações afirmativas tem transformado as universidades paulistas? In: 13o SEMINÁRIO MUNDOS DE MULHERES E FAZENDO GÊNERO: TRANSFORMAÇÕES, CONEXÕES E DESLOCAMENTOS, 2017. Anais... Florianópolis, SC, 2017. p. 1-17.. É importante reconhecer: a justificativa para a existência de programas não voltados ao recorte étnico-racial na Unicamp não era uma posição neutra, mas uma consequência de uma avaliação valorativa que destacava a meritocracia em detrimento do impacto social. Muitos críticos das cotas evocavam o princípio da autonomia universitária para barrar uma política institucional de ações afirmativas única para toda a universidade. Com isso, propagaram a ideia equivocada de se amparar no princípio da autonomia para se sobrepor à garantia de direitos fundamentaisTESSLER, Leandro R. Ação afirmativa sem cotas: O Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social da Unicamp. In: SIMPÓSIO UNIVERSIDADE E INCLUSÃO SOCIAL – EXPERIÊNCIA E IMAGINAÇÃO, 2006. Anais... Belo Horizonte, MG: Universidade Federal de Minas Gerais, 2006. P. 1–23.

A Lei de CotasBRASIL. Lei N° 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. e o movimento estudantil de 2016 foram pontos de inflexão neste cenário. A partir de 2016, houve uma mudança na política institucional da universidade, reflexo dos debates e conflitos que revelaram o caráter excludente de seu vestibular. A adoção das cotas étnico-raciais foi uma das reivindicações da greve de 2016, iniciada em 10/05 com a ocupação do prédio da reitoria. O movimento grevista, com o Núcleo de Consciência Negra (NCN) e a Frente Pró-Cotas, conquistou Audiências Públicas para debater a implantação de novas políticas de ações afirmativas em todas as Congregações (instâncias de deliberação de cada unidade de ensino) e no Conselho Universitário (instância máxima de deliberação da universidade).

Fruto desses debates, a Unicamp aprovou o princípio das cotas étnico-raciais na graduação e o Vestibular Indígena, sem abdicar do PAAIS, além de criar grupos de trabalho para propor melhorias ao seu processo seletivo, como ampliação do ProFis. Essas discussões abriram caminho para, em 2016, o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) adotar a primeira política de cotas na pós-graduação da Unicamp; em 2020, aprovar a expansão das políticas para os Colégios Técnicos da Unicamp; e em 2021, aprovar a reserva de vagas em concursos para funcionários da carreira PAEPE (Profissionais de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão). A pós-graduação foi o último setor da universidade a ter aprovada uma política institucionalizada de ações afirmativas.

O trabalho dos grupos

Em maio de 2020, a Associação Central de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Campinas (APG Unicamp) constituiu um grupo de trabalho pela implementação das cotas étnico-raciais na universidade. Esse grupo reuniu a contribuição de estudantes e movimentos de diversos institutos e faculdades da Unicamp, em diversos níveis de formação, interessadas/os em levar o debate de cotas na pós-graduação. O Relatório Final desse grupo, apresentado em agosto de 2020, apontou a ausência de um acompanhamento institucional dessas ações afirmativas por parte da Unicamp, falhando na missão de garantir um dos principais direitos básicos da população brasileira: o acesso à educação.

Em 2021, a APG conquistou o compromisso de todos os candidatos à reitoria com a implementação das ações afirmativas na pós-graduação, além de apoiar a Carta de Docentes Pretos, Pardos e Antirracistas da Unicamp em defesa das Ações Afirmativas. No final do ano seguinte, com a nova gestão da Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPG), conduzida pela Profa. Rachel Meneguello, houve a criação do GT para Adoção de Cotas Étnico-Raciais na Pós-Graduação da Unicamp. Esse grupo foi constituído por membros da Comissão Central de Pós-Graduação, coordenadores de programas de pós-graduação, representantes discentes, técnicos da PRPG e membros da APG Unicamp. Após uma série de encontros e debates, o relatório final desse grupo deu origem à resolução aprovada no Conselho Universitário.

No período de levantamento do GT da APG, apenas 25% dos programas de pós-graduação da universidade aderiam a cotas em seus editais de ingresso, sendo que três atendiam pessoas trans e somente um contemplava pessoas com deficiência. O Grupo de Trabalho da PRPG mapeou que atualmente 42% dos programas de pós-graduação da Unicamp possuem em seus editais pelo menos um tipo de ação afirmativa e 40% se dispõem a adotar nos próximos processos seletivos. Contudo, 16% dos programas ainda consideram não adotar as cotas. Abaixo o resultado detalhado do levantamento do GT:


Programas que já adotam cotas

Programas em vias de adotar cotas em 2023


No contexto dos trabalhos do GT da PRPG, ao menos dois pontos fundamentais da resolução foram desdobramentos imediatos da luta do movimento negro de pós-graduação, das entidades da comunidade universitária e do trabalho das representações estudantis. Primeiro, o próprio produto do grupo ser uma resolução para toda a universidade foi a materialização de uma das reivindicações da representação discente. Mais do que retirar uma carta de intenções, era necessária uma diretriz que balizasse a implementação das cotas em todos os programas. Realizar as ações afirmativas voltadas ao acesso em modalidade de cotas supera o paradigma de utilizar apenas políticas de bonificação, que se mostraram menos eficientes em atingir o objetivo de ter mais pessoas negras e indígenas entre os ingressantesLISBOA, Sofia Bonuccelli Heringer. Cotas sim, cortes não! - a conquista das cotas étnico-raciais na Unicamp. 2020. 136 f. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2020..

Em segundo lugar, a necessidade de constituir um grupo de avaliação periódica da implementação da política de ações afirmativas nos Programas pela Pró-Reitoria de Pós-graduação. De fato, uma das recomendações do Relatório do GT de Cotas foi a criação de um observatório de avaliação e melhorias da política de cotas, institucionalizado na PRPG, de modo a acompanhar a política de cotas através de pesquisas e seminários de avaliação. O objetivo dessa proposta é garantir maior transparência no andamento da política frente à comunidade acadêmica. A implementação da política precisa voltar ao centro da avaliação.

Os próximos passos

A tarefa do dia seguinte à aprovação é propor um mapeamento étnico-racial de seus estudantes e parâmetros de avaliação da política mais abrangentes, não apenas baseados em comparar o desempenho de cotistas e não cotistas. Não podemos nos esquecer: muitas vezes exige-se dos contemplados pelas ações afirmativas um desempenho superior ao dos alunos não contemplados. Não se considera, por exemplo, que além das barreiras do processo seletivo, as bolsas e auxílios financeiros vinculados à permanência estudantil já apresentam inúmeras contrapartidas para os estudantes cotistas, até mesmo em frequência nas aulas e horas de trabalho. Compreender a política de cotas étnico-raciais sem considerar o pacto social em que está inserida e os valores republicanos de uma sociedade mais justa, solidária e coesa, é apresentar uma avaliação insuficiente também do ponto de vista técnico e metodológicoJANUZZI, Paulo de Martino. A implementação no centro da Avaliação de Políticas Públicas. Revista AVAL, Fortaleza, CE, v. 2, n. 16, p. 64–81, 2019.

Grandes conquistas impõem grandes desafios para mantê-las. Por mais que a Unicamp tenha avançado em reconhecer institucionalmente a necessidade de que todos os programas tenham cotas, essa luta na base exigirá pressão e convencimento em cada um dos programas de pós-graduação. Precisamos avançar na representatividade racial e de gênero em todos os cargos de liderança da Unicamp e na formação do corpo docente e técnico-administrativo para atender as novas demandas sociais de uma universidade de fato plural e socialmente referenciada. Não há ciência plural sem universidade preparada para a diversidade.

Além disso, as fragilidades do pós-graduando no mundo do trabalho e da formação nos colocam a necessidade de aprofundar o debate das políticas de ações afirmativas para além do acesso, colocando na ordem do dia as questões voltadas à permanência e garantia de um conjunto básico de direitos do pesquisador em formação. Essa é nossa tarefa urgente e imediata no movimento de pós-graduação em todo o país!




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