O que a história nos ensina? Ela pode nos ensinar? Reflexões a partir da pesquisa que desenvolvi sobre a mortalidade em Campinas no século 19.
O sentimento de que a história se repete e ensina lições está enraizada no senso comum. Uma frase atribuída ao filósofo George Santayana nos lembra: “aqueles que não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repetí-lo”. Outra, de autoria atribuída a Mark Twain, nos diz que a história nunca se repete, mas rima com frequência.
Ainda que a autoria das frases não seja clara, elas trazem um sabor de verdade. Vivemos um momento único, mas que guarda semelhanças com outras epidemias na história. Por isso, trago 3 reflexões que tenho feito sobre a Covid-19 a partir da pesquisa que desenvolvi durante o mestrado. Partes importantes dessa história vão ficar de fora, mas podem ser encontrados aqui.
Estudei a mortalidade durante as crises de febre amarela em Campinas no final do século 19. Campinas foi nessa época uma cidade rica pela economia cafeeira e servida com as principais ferrovias. Até 1889, poucos anos antes da abolição da escravidão, a cidade possuía a maior população escravizada de São Paulo. Seu núcleo urbano crescia com suas contradições: aumentava a população egressa da escravidão, os imigrantes e a população pobre.
Acostumada a enfrentar os casos de varíola, a cidade encontrou uma epidemia inesperada no verão de 1889. A febre amarela se disseminou rápido e causou pânico, comoção social, esvaziamento da cidade e fome. Os surtos de febre amarela voltaram nos anos de 1890, 1892, 1896 e 1897. As reformas urbanas e a condução do médico Emílio Ribas na Comissão Sanitária foram consideradas um “ensaio” para as experiências alinhadas com a teoria de Carlos Finlay, de que o mosquito era o transmissor da febre amarela.
As descobertas da microbiologia e o saber médico em evolução entraram em conflito com uma medicina tradicional. Curandeiros, práticos e homeopatas tinham conhecimento mais próximo das crenças e das concepções de doença da população em geral. Por isso, também gozavam de grande prestígio. E mesmo o tal saber médico a que me refiro não é algo homogêneo, mas repleto de disputas. No século 19, uma dessas disputas se dava por meio das teorias sobre a origem das doenças.
Anúncios de jornais, boticários e comerciantes apresentavam diversas infusões, preparados e purgantes. Manuais de medicina popular como o do Dr. Chernoviz eram verdadeiros best-seller. Receituários médicos da época mostram tratamentos variados com substâncias para causar transpiração, vômitos, e o uso do sulfato de quinino.
No cenário atual, vemos uma série de notícias falsas baseadas nesse conhecimento do lugar comum, fazendo uma associação da quinina com a hidroxicloroquina. É curioso que as bebidas com quinina tenham sido utilizadas para várias doenças ao longo da história. Já se admitia sua relativa eficácia contra os casos da malária desde o século XIX. No entanto, em todos os outros casos, a cura ou a melhora dos sintomas ainda estava muito distante do conhecimento e da prática médica.
As denúncias sobre uma suposta promoção de notícias falsas e de medicamentos sem eficácia como estratégia de política pública no Brasil são estarrecedoras. As implicações éticas do que a CPI da Pandemia revela são enormes e merecerão ser vistas e revistas no futuro, com maior distanciamento dos fatos e como exemplo de que Nuremberg foi ontem. O destaque dado pela imprensa de que tal medicamento é comprovadamente ineficaz apareceu no discurso público para que essa ideia fosse abandonada.
O impacto econômico e o número de vítimas totais da febre amarela em Campinas ainda hoje é debatido. Esse debate exige a comparação entre fontes de diversas naturezas como jornais, relatórios e dados administrativos. Minha pesquisa usou registros paroquiais, registro civil e relatórios de hospitais. Mesmo assim, um trabalho adicional de comparar com os registros de sepultamentos foi necessário, tendo em vista que muitas vítimas da febre foram enterradas sem registro. A tarefa hercúlea da demografia histórica faz com que na maioria das vezes nos limitemos a uma localidade pequena ou a um recorte temporal mais modesto.
Assistimos recentemente a tensão entre os órgãos de imprensa e o governo federal quanto a gravidade da Covid-19. O debate sobre os números e a tentativa de mudar a apresentação dos dados por parte do Ministério da Saúde motivaram a criação do Consórcio de Veículos de Imprensa. Esse consórcio sistematizou as informações vindas de secretarias de saúde dos estados brasileiros.
Não podemos cometer o equívoco de sermos rigorosos com o passado e tão leves com o presente. As informações de ontem são imprecisas para nós, mas elas eram precisas para o passado. As informações de hoje são aparentemente precisas até que amanhã algo seja descoberto sobre elas. Todas devem ser submetidas ao escrutínio e à crítica das fontes. Quando acessamos um documento, devemos nos perguntar a que interesses ele atende, porque é produzido e para quem, como em toda análise documental.
As epidemias não são “democráticas”, mesmo quando nós imaginamos que não existem razões para que desigualdades sociais resultem em desigualdades em saúde. O acesso a recursos pode proteger determinados grupos sociais da exposição ao risco de morte por algumas doenças.
A varíola castigou Campinas do passado, em especial a população urbana mais pobre e a população escravizada. Na febre amarela, os mais pobres, sobretudo estrangeiros, estavam propensos a viver em regiões ditas “insalubres”, em condições de exposição a riscos. Por mais que fugissem, eram fragilizados pela nutrição deficiente, pelas duras condições de trabalho e de moradia. O destino de muitas dessas vítimas das epidemias do passado foi morrer sem assistência médica, na rua, nos hospitais de isolamento ou abandonados na linha do trem.
Além disso, as causas de morte tem significado: elas determinam as condições do luto, onde uma pessoa é sepultada e sob quais circunstâncias. O estigma da varíola, da tuberculose, do HIV/AIDS, e de outras doenças na história ainda hoje nos fazem refletir. Por trás do diagnóstico correto e preciso, as doenças e causas de morte trazem à tona uma dimensão de discurso político. Não foram poucos os jornalistas que anunciaram a queda dos casos de Covid-19 onde não havia testagem, esquecendo os números de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG).
Pessoas sem máscara; com máscara de pano; com máscaras cirúrgicas; com máscaras PFF2. Países inteiros começam a dose de reforço, enquanto outros permanecem sem vacina. Grupos vulneráveis que somem da lista de prioridades, grupos que reaparecem ao sabor do momento político. Esses gradientes expõem uma ferida incômoda e uma valoração perversa: uma separação entre indivíduos e países que valem mais, e outros, que valem menos.
Falar de mortalidade sob uma perspectiva histórica nos dá a impressão de um desagradável déjà vu. O passado sempre é trazido para dialogar com o presente. Nosso momento histórico nos convida a defender um sistema público universal de saúde e as nossas instituições de pesquisa, que em poucos meses desenvolveram e distribuíram vacinas eficazes. Nosso SUS tem muito a caminhar, mas não se ajoelha facilmente diante dos desafios brasileiros.
Não acho que a gente viva numa cheia de repetições, não podemos perder a esperança. Nos ensinou Paulo Freire que “a esperança é condimento indispensável à experiência histórica. Sem ela, não haveria história, mas puro determinismo. Só há história onde há tempo problematizado, não pré-dado. A inexorabilidade do futuro é a negação da história”.
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